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A permissão de entrada de alimentos em salas de cinema: proteção ao consumidor ou intervencionismo excessivo?

1) Introdução

Embora não se trate de tema inédito no âmbito de nossos Tribunais Superiores, como se depreende do Acórdão publicado em sua versão final no Diário de Justiça[1] de 15 de março de 2007, a discussão sobre a legalidade da proibição de entrada de consumidores em salas de cinema portando alimentos adquiridos em locais distintos das bombonieres das redes de cinema volta a ganhar relevância após o julgamento do REsp n. 1.331.948-SP de relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.

Conquanto não se possa afirmar que tal decisão configure posicionamento uníssono desse Tribunal Superior, o conjunto de decisões a respeito do tema vem se formando num sentido bastante diferente daquele divulgado pelos veículos de comunicação, além de trazer reflexão mais profunda acerca da forma como se deva encarar a própria interpretação do sistema consumerista, sob pena deste importante ramo do direito tentar sobrepor-se à própria relação jurídica fundamental, permitindo que o consumidor individual e isoladamente considerado acabe por desrepeitar o direito[2] do grupo de consumidores, considerados coletivamente, num verdadeiro exercício inadmissível de posição jurídica.

2) Divulgação da mídia sobre a decisão do REsp nº 1.331.948- SP.

Após a divulgação da ementa e resultado da decisão do STJ no âmbito do REsp nº 1.331.948-SP, mesmo antes da divulgação do inteiro teor do Acórdão retro mencionado, a notícia sobre a declaração pelo STJ da ilicitude da proibição de entrada de alimentos comprados fora das dependências do cinema ganhou destaque na imprensa eletrônica.

O site G1[3], do portal globo.com, informou que “O Superior Tribunal de Justiça proibiu os cinemas de impedir a entrada com alimentos e bebidas comprados em outros lugares.”

Matéria divulgada pelo portal da Folha de São Paulo[4] traz o título “STJ decide que proibir a entrada de comida de fora em cinema é abusivo”.

Novamente do portal globo.com, agora a partir da página do jornal “O Globo”[5], matéria qualifica a postura de determinada rede de cinemas do Rio de Janeiro como venda casada, ao fixar banner contendo lista de alimentos proibidos no interior da salas de cinemas[6].

Em razão dos exemplos acima apresentados[7], percebe-se aumento expressivo no número de denúncias aos órgãos de proteção ao consumidor, como o Procon e, ainda, aumento substancial na busca de tutela jurisdicional postulando-se indenizações por danos à esfera extrapatrimonial. Motivados pelas notícias veiculadas, os consumidores têm se voltado contras as postura adotadas pelas redes de cinema, imputando-lhes o desrespeito à legislação de proteção aos consumidores.

No entanto, as notícias veiculadas não traduziram o espírito da decisão exarada pelo Tribunal Superior, na medida em que omitem importante aspecto que em si corresponde ao cerne da discussão, qual seja, a similaridade entre os produtos vendidos dentro da rede de cinemas e aqueles comprados em diferentes locais.. 

3) Breve síntese acerca do posicionamento da Jurisprudência sobre o tema

3.1) Decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial nº 744.602-RJ.

Conforme já mencionado na introdução destas breves linhas, conquanto o destaque dado à decisão do REsp 1.331.948-SP tenha sucitado o interesse da imprensa e a atenção dos consumidores, o tema foi pioneiramente tratado pelo Ministro Luiz Fux no âmbito do REsp 744.602-RJ.

No voto que negou provimento ao Recurso interposto por rede de cinemas de abrangência nacional, o Ministro aponta que a intervenção do Estado na ordem econômica deve ter como objeto a proteção dos princípios do direito do consumidor.

Dessa forma, a partir do direito à liberdade de escolha, esculpido no artigo 6º, II do Código de Defesa do Consumidor, somado à interpretação teleológica da norma jurídica considerou subespécie da prática denominada por “venda casada” a postura da empresa cinematográfica “permitir a entrada de produtos adquiridos nas suas dependências e, por outro lado, interditar aqueles adquiridos alhures”.

3.2) Decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial nº 1.331.948- SP[8].

O voto do Ministro Relator Ricardo Villas Bôa Cueva segue de forma praticamente irrestrita o voto paradigma proferido pelo Ministro Luiz Fux em 2007, explicitando que, embora o cinema “não obrigue o consumidor a adquirir o produto, impede que o faça em outro estabelecimento, configurando, portanto, de forma indireta, uma venda casada”.

Demonstrando a complexidade do assunto, embora o Ministro Relator tenha sido acompanhado por outros dois julgadores, os Ministros Marco Aurélio Bellize e João Otávio Noronha tiveram seus votos vencidos, ao passo que deram provimento ao Recurso da rede de cinemas, em suma, entendendo pela inexistência da venda casada, uma vez que a compra de produtos nas dependências do cinema não é, em qualquer hipótese, uma imposição do fornecedor. Ainda, consideraram os Ministros a venda de produtos nas lanchonetes dos cinemas como atividade incorporada ao desenho do negócio desenvolvido, consubstanciando parte importante da receita dos cinemas.

3.3) Decisão proferida pel Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no Agravo de Instrumento nº 2152084-93.2016.8.26.0000. Caso de São José do Rio Preto. Lei Municipal 11.877/2016.

Para além da discussão travada nos tribunais acerca da legalidade da postura das redes de cinema, a cidade de São José do Rio Preto viu neste ano de 2016 a entrada em vigência da Lei Municipal n. 11.877/2016 que, em seu artigo 1º, estabeleceu de forma expressa a permissão de entrada em salas de cinema e teatro portando alimentos adquiridos em estabelecimentos diversos:

Art. 1º Fica permitida a entrada de alimentos adquiridos em outros locais nas Salas de Cinemas e Teatro no município de São José do Rio Preto.

Segundo o texto legal, a inobservância deste dispositivo enseja na aplicação de penalidades que variam entre a aplicação de multa até a cassação do alvará de funcionamento da entidade responsável pelo ato.

Neste contexto, rede de cinema local impetrou mandado de segurança em face de decisão da prefeitura municial de São José do Rio Preto que suspendeu seu alvará de funcionamento, alegando descumprimento da legislação local. Embora negada a tutela de urgência em primeiro grau, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por meio do Acórdão no Agravo de instrumento nº 2152084-93.2016.8.26.0000 de relatoria do Desembargador Reinaldo Miluzzi, reformou a decisão do juízo a quo, dando provimento ao Agravo e mantendo válido o alvará de funcionamento da empresa em questão.

Em suas razões, não obstante o Desembargador reconheça no espírito da legislação municipal o escopo precípuo de proteção ao consumidor, bem como o posicionamento do STJ, ele afirma que “o entendimento dado pela Administração Pública de que o consumidor pode adentrar na sala de projeção portando qualquer alimento extrapola o que se entende por prática abusiva”.

Em complemento, o magistrado relata que a “impetrante não restringe a entrada de todo e qualquer alimento, mas aqueles que podem causar prejuízo à higiene das salas de cinema e à segurança dos demais consumidores”, embora – frise-se – a legislação municipal não faça tal especificação em seu texto.

3.4) Diagnóstico do conjunto de decisões sobre o tema.

As decisões que se apresentam sobre o tema, com relevância maior, por óbvio, àquelas provenientes do Superior Tribunal de Justiça, embora esparsas e com teses divergentes, parecem caminhar em uma trilha sem volta, qual seja, a percepção de que os alimentos e bebidas similares aos comercializados nas lanchonetes das redes de cinema deverão ter sua entrada permitida ainda que comprados em outros locais de venda, sob pena de preenchimento do suporte fático, ainda que de forma indireta, da norma que define a venda casada, ilustrada no inciso I, do artigo 39 do CDC..

Partindo-se deste diagnóstico, rechaça-se, em primeiro lugar, a notícia sobre a possibilidade de entrada em cinemas e teatros portando qualquer tipo de alimento e bebida, devendo-se observar quais os alimentos que são comercializados pela própria rede de cinema, a fim de se fazer o paralelismo com os produtos que poderão ser consumidos livremente nas salas de cinema.

Resta-nos a discussão sobre a interpretação e aplicação do direito do consumidor não apenas sob a proposição de um diálogo de fontes e ramos do direito, na medida em que se faz necessário o cotejamento de normas e princípios em face da relação jurídica travada, bem como em relação ao próprio grupo heterogêneo de consumidores, sob pena de se criar um ambiente absolutamente inóspito para os próprios destinatários das normas protetivas.

4) Proteção irrestrita ao consumidor individualmente considerado: aplicação do sistema consumerista ou subversão do ordenamento em prejuízo da própria coletividade.

Após a veiculação equivocada do posicionamento do STJ acerca da questão, o número de reclamações a respeito da postura adotada pelos cinemas, seja pelos canais de atendimento ao cliente das próprias redes de cinema, seja aos entes de proteção aos direitos do consumidor como o PROCON, ou, adentrando ao âmbito do Poder Judiciário, por meio das ações judiciais, sofreu sensível aumento. São muitas as ações pugnando pela existência de pretensão indenizatória em virtude de mácula à esfera extrapatrimonial dos consumidores.

Tal posicionamento, travestido da roupagem da liberdade de escolha ao consumidor, em verdade, subverte a teleologia da norma esculpida no artigo 39, I do CDC, uma vez que se deixa de considerar o direito do consumidor que deseja ir ao cinema e usufruir do seu espaço com o mínimo de condições de higiene e adequabilidade.

Utilizando-se da liberdade absoluta pugnada pelos defensores de tal posicionamento, estar-se-ia diante de absurda situação onde a todos seria dado ingressar na sala de cinema com os mais variados tipos de alimentos, obrigando ao interessado unicamente em assistir um filme – escopo precípuo de quem adquiri o ingresso de cinema – conviver com os diferentes odores e barulhos.

Tal questão, muito além de se travar diante da relação jurídica estabelecida entre consumidor e fornecedor, impacta diretamente aos próprios consumidores que, antes mesmo de figurarem na posição jurídica de consumidores de um bem ou produto, na qualidade de sujeitos de direito devem se abster de invadir ou macular a esfera jurídica alheia, máxima popularmente conhecida pela prescrição que diz:”o direito de determinada pessoa finda quando começa o de outrem”.

5) Conclusão.

Seguindo as palavras de Cláudia Lima Marques[9], “não se deve perder de vistas a reflexão sobre a heterogeneidade dos interesses de diversos grupos de consumidores de um mesmo produto”, devendo-se considerar as circunstâncias e grupos de normas no caso concreto.

A posição da mídia sobre o tema e – com maior grau de importância no âmbito dos operadores do direito – de parte substancial da doutrina defensora irrestrita da liberdade do consumidor[10], deixa de considerar o consumidor final em sua coletividade, ou seja, o usuário que busca pelo entretenimento cinematográfico per si ficará sempre adstrito à sorte de seu vizinho e também consumidor não portar produtos de características gordurosas ou com odores desagradáveis, ou ainda, cuja deglutição produza excessivo ruído.

Quanto à jurisprudência que se forma sobre o tema, embora falte às decisões o merecido aprofundamento sobre a composição da receita das redes de cinema, cuja comercialização de alimentos e bebidas equivale a parte importante de seu faturamento, os tribunais, a despeito inclusive de leis locais que proibem qualquer restrição ao consumidor, parecem haver definido os parâmetros para identificação da ilicitude de conduta por parte das redes de cinema, quais sejam, a proibição de entrada de consumidores com produtos que sejam comercializados pela própria rede de cinemas, podendo, por outro lado, impedir a entrada de alimentos cujo acondicionamento ou características não correspondam àqueles de sua oferta.

[1] Diz-se “versão final” uma vez que houve, em verdade, primeira publicação realizada em 01 de março de 2007 contendo incorreções acerca dos dados pertinentes aos autos dos processo em questão.

[2] Em sentido amplo.

[3] http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2016/06/stj-proibe-cinemas-de-impedir-entrada-de-alimentos-comprados-fora.html.

[4] http://www1.folha.uol.com.br/colunas/mercadoaberto/2016/06/1782550-stj-decide-que-proibir-a-entrada-de-comida-de-fora-em-cinema-e-abusivo.shtml

[5] http://oglobo.globo.com/economia/defesa-do-consumidor/mesmo-apos-autuacao-cinema-em-shopping-do-rio-mantem-venda-casada-19451560

[6] Anote-se para fins de conhecimento a lista divulgada: sanduíches, cachorro quente, frango (tira/pedaço, pizza, batata recheada, refeição (comida) sorvete, milk shake, bebida alcoólica.

[7] Excepciona-se portais cujos leitores são, em sua essência, profissionais do direito onde constam que tal proibição refere-se a alimentos similares e de mesma natureza.

[8] https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=60167982&num_registro=201201325556&data=20160905&tipo=51&formato=PDF

[9] Novas tendências do Direito do Consumidor. Rede Alemanha-Brasil de Pesquisas em Direito do Consumidor. Parte I-Visões da vulnerabilidade e da necessária proteção dos consumidores nos mercados. Revistas dos Tribunais.

[10] Dentro dos quais destaco a própria autora anteriormente citada, Cláudila Lima Marques, ao explanar em seu Manual de Direito do Consumidor (Edição 2014) a decisão do REsp 700.602-RJ de relatoria do Ministro Luiz Fux, definindo como venda casada, “por via oblíqua” a proibição do consumidor ingressar em salas de cinema com produtos alimentícios adquiridos em outros estabelecimentos”, sem que o devido esclarecimento acerca da natureza similar entre os produtos adquiridos e os comercializados nas dependências do cinema.