- O retorno do voto de qualidade
Nas últimas semanas o Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou uma série de medidas de recuperação fiscal pelas quais pretende alcançar o tão almejado equilíbrio nas contas do governo.
Dentre as medidas, a que recebeu o maior destaque (e críticas, também) foi a reinstituição do voto de qualidade em julgamentos no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), através da edição da Medida Provisória nº 1.160/2022. O voto de qualidade consiste no desempate dos julgamentos realizados no CARF através de voto do presidente da câmara, que necessariamente é um representante da Fazenda Nacional.
Vale recordar que a discussão em torno do voto de qualidade não é nova, já tendo capítulos envolvendo o Poder Legislativo e o Poder Judiciário. Em 2020, o Congresso aprovou a Lei nº 13.988/2020, que determinava que em caso de empate no julgamento o desfecho deveria ser favorável ao contribuinte, afastando a aplicação do voto de qualidade.
Por consequência, foram ajuizadas três ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF) para o questionamento da norma que derrubou o voto de qualidade. O julgamento das ADIs ainda não foi concluído pelo STF, porém o Plenário da Corte já havia formado maioria para negar provimento às ADIs. O julgamento se encontra interrompido após o pedido de vista apresentado pelo Ministro Nunes Marques.
Nota-se, portanto, que o restabelecimento do voto de qualidade surge em nítido conflito com a vontade do Poder Legislativo, exteriorizado quando da edição da Lei nº 13.988/2020 e com os posicionamentos já manifestados por parcela significativa dos Ministro do STF. De toda forma, é muito cedo para uma opinião sobre a chances de conversão da Medida Provisória nº 1.160/2022 em lei, ante a recente mudança de composição do Congresso.
É importante destacar a pretensão de ampliar a arrecadação através do voto de qualidade não se mostra condizente com a função institucional do CARF, cuja finalidade é julgar os recursos “que versem sobre a aplicação da legislação referente a tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil” [1]. Assim, a instituição do voto de qualidade não deveria representar um estímulo aos julgamentos desfavoráveis aos contribuintes, na medida em que o controle de legalidade das exigências tributárias é o dever primário de suas funções. Porém, o contexto de edição da Medida Provisória nº 1.160/2022 (medidas de recuperação fiscal) transmite mensagem totalmente diversa.
Para se ter uma demonstração dos impactos do voto de qualidade, é importante destacar que, apesar de ser aplicado em um percentual pequeno de casos julgados pelo CARF, tais casos representam valores expressivos.
Sendo assim, há um grande temor de que o restabelecimento do voto de qualidade, em um contexto de estímulo à arrecadação, represente uma guinada da jurisprudência do CARF em sentido desfavorável aos contribuintes, principalmente em termos de grande repercussão econômica.
Os primeiros julgamentos do CARF estão marcados para o início do próximo mês e já trazem uma pauta com 58 processos que exigem cerca de R$11,5 bilhões, o que só aumenta a preocupação dos contribuintes com a possível aplicação do voto de qualidade em seu desfavor.
Esperamos que todas as previsões pessimistas não se confirmem e que o caráter técnico dos julgamentos realizados pelo CARF prevaleça ante o interesse arrecadatório do Fisco Federal.
- Novo programa de Transação Tributária
Outra medida de recuperação fiscal anunciada pelo Ministro da Fazenda foi a criação de um novo programa de transição tributária.
O Programa de Redução da Litigiosidade Fiscal (PRLF), regulamentado pela Portaria PGFN/RFB 1/2023, visa a quitação dos débitos em discussão na esfera administrativa (DRJ e CARF) e inscritos na dívida ativa da União. A Portaria não revoga ou altera as normas anteriores sobre transação tributária, mas cria uma modalidade excepcional por adesão, que ficará aberta no período entre 1º de fevereiro e 31 de março na plataforma E-CAC ou REGULARIZE.
Para as pessoas físicas e empresas de pequeno porte com débitos de pequeno valor (até 60 salários-mínimos), o programa prevê descontos de até 50% no valor da dívida, incluindo o montante principal do crédito tributário. No entanto, a transação não se aplica às empresas optantes pelo Simples Nacional, regime tributário adotado pela maioria das pequenas empresas.
O débito ser parcelado em até 12 vezes, sendo o valor da entrada de 4% sobre o valor total transacionado dividido em quatro parcelas e o restante do valor devidamente reduzido pago em 8 parcelas.
Para os débitos classificados como irrecuperáveis ou de difícil recuperação, a Portaria estabelece redução de até 100% do valor dos juros e das multas, observado o limite de até 65% sobre o valor total. No mínimo 30% do saldo devedor pago em dinheiro, em até 9 prestações mensais, e o restante poderá ser quitado com créditos decorrentes de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa da CSLL apurados até 31 de dezembro de 2021.
Já para os débitos classificados com alta ou média perspectiva de recuperação, não há previsão de descontos. Contudo, até 52% destes débitos poderão ser pagos com créditos decorrentes de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa da CSLL e os 48% divididos em até 9 parcelas.
Para os demais débitos em discussão na esfera administrativa, o programa prevê a concessão de desconto de até 100% do valor dos juros e das multas e o parcelamento em até 12 vezes do débito. Nesta hipótese, o valor da entrada é de 4% sobre o valor total transacionado dividido em quatro parcelas e o restante do valor devidamente reduzido pago em 2 (redução limitada a 65% sobre o valor total de cada crédito) ou 8 parcelas (redução limitada a 50% sobre o valor total de cada crédito).
Importante salientar que, na transação individual e na transação individual simplificada, disciplinadas pela Portaria 6.757/2022, os débitos podem ser parcelados em até 120 prestações.
Ao nosso ver, os principais pontos negativos do novo programa de transação são a restrição dos descontos aos débitos de difícil recuperação, a concessão de parcelamento da dívida limitado apenas à 12 prestações e a exclusão dos contribuintes optantes pelo Simples Nacional do programa.
Por outro lado, a portaria permite a transação de débitos não abrangidos pelos programas de transação individual e a transação individual simplificada, como os débitos abaixo de R$1 milhão.
Cury Santana Kubric Advogados
Mauricio Kubric | Sócio
Notas:
[1] Art. 1º do ANEXO I do Regimento Interno do CARF.
[2] Dados extraídos de pesquisa ANÁLISE DE RECORRÊNCIA DOS VOTOS DE QUALIDADE NO CARF, realizada pelo Núcleo de Tributação do Insper em 11.05.2020.