1. INTRODUÇÃO.
O mundo viu uma virada econômica muito grande no novo milênio quando os grandes conglomerados empresariais mais valiosos do planeta mudaram de rosto. Com a chamada 4ª Revolução Industrial, que resulta da interação entre os meios de comunicação e o desenvolvimento tecnológico, o top 10 de grupos empresariais mais valiosos tem, p. ex., Apple, Google, Facebook, Microsoft, todas ligadas à atividade tecnológica e à rede mundial de computadores, a Internet.
Dentro desse praticamente universo digital que surgem ideias promissoras voltadas à intermediação entre consumidores e organizadores de festas. A razão desse segmento está nas distâncias físicas que podem ser rompidas com o progressivo acesso à Internet: em vez do consumidor ter de se deslocar aos locais onde comercializados, p. ex., em lojas de shoppings centers, ele pode adquirir o ingresso no conforto da sua casa, através do computador, do celular ou tablet.
Tendo em vista que a tecnologia muda a todo momento, tem elevados custos para que sua criação e melhoramento, bem como atenda ao interesse dos investidores em obter lucro, as desenvolvedoras das plataformas digitais de intermediação cobram a taxa de conveniência. Tal remuneração foi colocada em xeque recentemente, em razão de decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), um tribunal que tem como uma das suas funções principais decidir de forma a orientar os tribunais estaduais e federais no Brasil.
A decisão do STJ considerada modelo a ser seguido pelos demais tribunais brasileiros foi proferida no Recurso Especial n. 1.737.428, cuja origem é o Rio Grande do Sul (REsp n. 1.737.428/RS).
Como os tribunais são compostos por grupos (= colegiados) de juízes e juízas, serão objeto deste texto os votos vencedores, eis que eles foram seguidos pela maioria dos julgadores e julgadoras.
No item inicial haverá exposição do contexto que gerou toda a comoção relacionada à taxa de conveniência, sendo que os subitens serão destinados à exposição dos votos vencedores inicial e final do REsp n. 1.737.428/RS.
2. AS DECISÕES TOMADAS PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA NO RECURSO ESPECIAL 1.737.428/RS.
Primeiramente, importa narrar de forma breve a situação que causou todo o debate sobre a taxa de conveniência. Tratou-se de medida judicial coletiva movida por certa associação do Rio Grande do Sul (= autora) contra sociedade empresária que desenvolve plataformas digitais voltadas a intermediar a relação entre consumidores e organizadores de festas (= ré). Em síntese, a associação pedia ao Judiciário gaúcho a condenação da ré a que deixe de cobrar a taxa de conveniência em relação aos ingressos emitidos pela Internet, bem como a restituir tudo o que cobrado a título da
referida remuneração nos últimos cinco anos e, também, a compensar pelo dano moral coletivo.
Houve parcial acolhimento dos pedidos da autora, determinando a primeira instância o seguinte em relação à taxa de conveniência cobrada pela ré: que deixasse de cobrá-la, sob pena de multa diária, a restituir as quantias cobradas e a publicar a condenação em veículos jornalísticos. A questão do dano moral coletivo foi negada. As duas partes do processo recorreram ao TJRS. Este tribunal acolheu o recurso da ré, negando a totalidade de pedidos feitos pela autora, a qual, por sua vez, teve seu recurso negado. Em resumo, o tribunal entendeu que a taxa de conveniência é parte do cotidiano do consumidor que tem interesse em espetáculos e busca na Internet o acesso a tais eventos. Insatisfeita, a parte autora apresentou REsp, cujo encaminhamento foi negado pelo TJRS, mas que chegou ao STJ através de outro recurso, o Agravo em Recurso Especial (AREsp). A 3ª Turma do STJ ficou incumbida de analisar o caso, cabendo à Ministra Nancy Andrighi cuidar do processo, a chamada relatoria. O AREsp foi admitido pela relatoria do processo e o REsp foi encaminhado ao
Superior Tribunal de Justiça.
Em março de 2019 houve decisão dos Ministros da 3ª Turma, sendo que a maioria seguiu o voto da Ministra Nancy Andrighi, que decidiu pela ilegalidade da cobrança da taxa de conveniência nas compras de ingressos pela Internet. A decisão colegiada começou a surtir seus efeitos para a sociedade em 15 de março de 2019, com a sua publicação.
Posteriormente, a parte prejudicada, a ré do processo, apresentou medida voltada a esclarecer pontos na decisão tomada em março/2019 (os embargos de declaração). A decisão sobre essa medida aclaratória só foi tomada em outubro de 2020, sendo que a 3ª Turma seguiu o voto do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, o que causou uma nova reviravolta na temática da cobrança da taxa de conveniência, que decidiu pela legalidade da cobrança da taxa de conveniência nas compras de ingressos pela Internet.
2.1. A decisão inicial pela ilegalidade da taxa de conveniência: voto inicialmente vencedor da Ministra Nancy Andrighi.
Superadas questões formais, a Min. Nancy Andrighi desdobrou seu voto em diversos itens e foi de conclusão parcialmente favorável à associação autora: acolheu a ilegalidade da taxa de conveniência, mas negou a compensação pelo dano moral coletivo. A exposição a seguir tratará tão somente do trecho vencedor (= ilegalidade da taxa de conveniência).
Três foram os nortes que orientaram a decisão da julgadora, todos partindo da ideia de abusividade para o Direito: ‘’Nesse contexto, a abusividade deve ser averiguada tendo como norte, além das hipóteses enumeradas de modo exemplificativo nos arts.39 e 51 do CDC, os princípios gerais da boa-fé objetiva e da lesão enorme’’.
De acordo com o voto, a boa-fé objetiva consiste em uma norma que determina a cooperação por aqueles que celebram um contrato, sendo que no Direito do Consumidor estão expressos, entre outros, os direitos à informação adequada, à proteção contra publicidade enganosa, abusiva e contra práticas comerciais repressivas ou desleais, e à proteção contra cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais. Sobre a lesão enorme, o voto entendeu que é uma figura relacionada à situação na qual o prestador do serviço ou produto estabelece contratualmente um dever que desequilibra a relação com o consumidor, que fica em situação considerada manifesta e exageradamente desvantajosa.
Considerando os conceitos acima que a Ministra Nancy Andrighi decidiu pela ilegalidade da taxa de conveniência e da sua cobrança. Inicialmente, a decisão relacionou a taxa de conveniência à ‘’venda casada’’, constante no art. 39, inciso I do CDC(ii) . A ‘’venda casada’’ é considerada uma prática abusiva contra o consumidor, que tem sua liberdade de escolha reduzida ilegalmente pelo fato de um serviço ou produto principal ser fornecido tão somente se o consumidor comprar um serviço ou produto intermediário.
Especificamente sobre a venda de ingressos pela Internet, o voto expõe que ‘’é impossível conceber a realização de espetáculo cultural (…) sem que a venda do ingresso integre a própria escala produtiva e comercial do empreendimento’’ e que essa venda ‘’corresponde à fase principal da cadeia produtiva’’. Também, a decisão associa a venda à intermediação, em especial com a corretagem, que traz vantagens aos envolvidos no negócio final, situação que não acontece na venda de ingressos pela Internet. A Ministra expõe que não existe comodidade ao consumidor, e sim ‘’privilegia os interesses dos produtores e promotores do espetáculo cultural de terem, no menor prazo possível, vendidos os espaços destinados ao público e realizado o retorno dos investimentos’’.
Além da ausência de comodidade ao consumidor, a decisão afirma que existe transferência dos custos dos riscos da atividade ao consumidor, o que consiste em prática que causa desequilíbrio na relação. Por fim, expõe que além da supressão da liberdade de adquirir diretamente o ingresso e criar desequilíbrio prejudicial ao consumidor, a cobrança da taxa de conveniência não é exposta de forma clara e destacada ao consumidor, para que este assuma o débito que seria de incumbência da organização do evento.
2.2. A decisão final pela legalidade da taxa de conveniência: voto final vencedor do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino.
Insatisfeita com a decisão proferida inicialmente, a parte ré opôs embargos de declaração, para obter esclarecimentos sobre o teor do que decidido. O voto do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino liderou a maioria e reformou o que inicialmente decidido pela 3ª Turma do STJ, acolhendo em parte o que alegado pela ré.
Uma questão formal foi exposta no voto: o colegiado teria extrapolado os limites do que pedido pela autora, pois ‘’acabou declarando a ilegalidade da “taxa de conveniência” (constou no comando da sentença: “diante da sua ilegalidade”), em vez de declarar abusivas apenas as práticas indicadas como abusivas na petição inicial’’. É dizer: o pedido feito pela associação foi de proibir certas condutas consideradas abusivas – sem afetar a taxa de conveniência -, mas o Judiciário decidiu que a taxa cobrada era ilegal. Sobre a matéria, o voto também faz referência à corretagem e aplica tese fixada pelo Superior Tribunal de Justiça (Tema 938/STJ) ao caso da venda de ingressos pela Internet, focando no dever da desenvolvedora da plataforma em informar ao consumidor antes da contratação (fase pré contratual). Segundo decisão, se devidamente informado da taxa de conveniência, não haveria abusividade, expondo o Ministro que ‘’Não se vislumbra abusividade, em tese, na cobrança por esse serviço, o qual, diga-se, é amplamente praticado pelos canais de venda online, sem prejuízo, é
claro, do controle da abusividade em cada caso concreto’’. Em síntese, o Ministro Paulo de Tarso expõe que deve haver controle da forma como cobrada a
taxa de conveniência, mas não da remuneração em si, isto é, a taxa de conveniência é lícita (e, portanto, lícita sua cobrança), desde que atendido o dever de informação prévia e clara ao consumidor, bem como oportunizada via alternativa de compra que não inclua a taxa (p. ex., a bilheteria).
O acolhimento do que exposto pela ré foi no sentido de reduzir a abrangência da condenação, determinando-se à ré que ela exponha de forma prévia à etapa da compra do ingresso a existência da taxa de conveniência e o quanto será cobrado do consumidor.
3. SITUAÇÃO JURISPRUDENCIAL JUDICIAL: RETOMADA DA SITUAÇÃO ANTERIOR À COMOÇÃO INICIAL.
Anteriormente à decisão da 3ª Turma do STJ (voto Min. Nancy Andrighi), o TJSP analisava contextos relativos à cobrança da taxa de conveniência no sentido de chancelar a remuneração, desde que não cobrada de forma ilegal. Duas decisões serão expostas, ambas anteriores à primeira decisão do STJ sobre a temática.
Em medida movida pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP), o TJSP acolheu recurso de empresária do segmento de venda de ingressos pela Internet e julgou o pedido ministerial de restituição de tudo o que cobrado a título da referida taxa por ser ilegal(iii) . De acordo com voto do Desembargador Flávio Abramovici, a taxa de conveniência reflete a praticidade do consumidor não ter de ir a certos locais para retirar o ingresso, o que mostra a utilidade que a venda pela internet proporciona aos consumidores, que devem ter seu direito de opção protegido no sentido de
viabilizar a escolha de ir aos espaços físicos para compra do ticket sem cobrança da conveniência.
Um segundo caso foi julgado em 2017 pela Corte bandeirante (iv) . Foi caso individual no qual consumidor alegava a abusividade da cobrança da taxa de conveniência. Na decisão constou de forma expressa que a cobrança da referida remuneração não era ilegal e que ‘’o consumidor tinha a opção de efetuar a compra diretamente na bilheteria do local do evento sem a incidência da referida taxa, entretanto optou pela facilidade e comodidade de aquisição por meio do serviço disponibilizado pela empresa apelada’’.
Dois casos pós-março de 2019 serão reportados. Os efeitos da decisão inicialmente vitoriosa (e posteriormente superada) ecoam até o presente. Em decisão proferida em 2021, o TJSP manteve multa aplicada pelo PROCON de SP contra empresário do segmento de vendas de ingressos pela Internet sob o pretexto de que o STJ decidira pela ilegalidade da taxa de conveniência (v).
Outra decisão no TJSP foi proferida no Juizado Especial Cível, no ano de 2020. Tratou-se de caso individual no qual consumidora alegou que a decisão do STJ a resguardava a adquirir ingresso pela Internet sem a cobrança da taxa de conveniência, a qual foi cobrada no caso concreto. Por isso, a parte autora pediu pela restituição do que pago na taxa e, também, compensação por dano moral.
A sentença foi de parcial procedência, condenando a ré a restituir o que recebido pela taxa(vi). Duas outras decisões proferidas no âmbito do Tribunal de São Paulo aderiram à retomada da legalidade da taxa de conveniência, o que perdura até o presente (mesmo com posicionamentos isolados contrários e desatualizados em relação ao que decidido pelo STJ).
O primeiro caso envolveu demanda judicial relacionada a multa aplicada pelo PROCON SP, sendo a sentença proferida de forma a manter a penalidade, todavia houve reversão no TJSP em razão do tempo transcorrido e a reforma do que decidido no REsp n. 1.737.428/RSv(ii). Constou na decisão do colegiado de SP que ‘’Consoante entendimento recente do STJ, é válida a intermediação pela internet da venda de ingressos para eventos culturais e de entretenimento mediante a cobrança de “taxa de conveniência”, desde que consumidor seja previamente informado do preço total da aquisição do ingresso, com o destaque do valor, como é o caso em epígrafe’’. O segundo caso tratado pelo TJSP envolveu a reforma de condenação de 1ª instância, constando no teor da decisão que ‘’Não há abusividade na cobrança de taxa de conveniência em venda de ingressos de show pela internet, sendo necessário, tão somente, o prévio aviso ao consumidor. Na hipótese dos autos, verifica-se que houve informação clara e suficiente no momento da aquisição dos ingressos, o que afasta o reconhecimento da ilegalidade e a determinação de restituição da quantia paga’’ (viii).
Dos julgados acima é que se extrai um momento inicial e favorável à taxa de conveniência que foi modificado por, aproximadamente, um ano em razão da decisão proferida pelo STJ (voto Min. Nancy Andrighi), momento este atualmente superado em razão da retomada da visão da licitude da taxa de conveniência (voto Min. Paulod e Tarso Sanseverino).
4. CONCLUSÕES.
O Direito italiano tem um nome dado a situações que decisões abalam certa estabilidade prévia: o Diritto Vivente (Direito Vivo). Tal ideia é aplicada no caso da taxa de conveniência em dois sentidos. O primeiro sentido é de que o Poder Público (Executivo, Legislativo e, no caso, Judiciário) deve decidir de forma estável, apta a trazer segurança para que as pessoas possam planejar e realizar seus projetos de vida.
O segundo sentido leva em consideração o que o Judiciário não fez com as reviravoltas relatadas. Como exposto, três foram os momentos: inicialmente, a legalidade da taxa de conveniência, a sua posterior ilegalidade e, atualmente (espera-se que de forma definitiva), a legalidade. Na situação intermediária, o Judiciário reputou ilegal a cobrança e viabilizou a cobrança retroativa. Houve insegurança diante da desconsideração às decisões judiciais anteriores à decisão de março/2019 e que asseguravam a cobrança da remuneração pela venda de ingresso pela Internet.
Uma outra perspectiva conclusiva é de que a decisão judicial no caso reflete um tema de fundo e muito mais amplo: a intervenção do Poder Público no mercado, o que pode ser perigoso por força do chilling effect (efeito inibidor ou dissuasor), que, adaptado ao caso, inibe a inovação tecnológica. É dizer: decisões tais quais a tomada pelo STJ (voto Min. Nancy Andrighi) podem inibir a inovação tecnológica pelo empresariado brasileiro, que exerce sua atividade constitucionalmente protegida de forma próxima (senão dependente) da tecnologia.
i Empresas mais valiosas do mundo: hoje x 2010. Disponível em: https://forbes.com.br/listas/2015/06/10-empresas-mais-valiosas-do-mundo-hoje-x-2010/#foto6. Acesso em 11 jan. 2022.
ii Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: I – condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos.
iii TJSP, Apelação Cível n. 0121827-57.2009.8.26.0100, Rel. Flavio Abramovici, 35ª Câmara de Direito Privado, Foro Central Cível: 25ª Vara Cível, j. 25/04/2016, DJE: 04/05/2016.
iv TJSP, Apelação Cível n. 1014404-23.2016.8.26.0602, Rel. Paulo Pastore Filho, 35ª Câmara Extraordinária de Direito Privado, Foro de Sorocaba: 5ª Vara Cível, j. 20/10/2017, DJE: 20/10/2017.
v TJSP, Apelação Cível n. 1003177-92.2020.8.26.0053, Rel. Percival Nogueira, 8ª Câmara de Direito Público, Foro Central da Fazenda Pública/Acidentes: 16ª Vara da Fazenda Pública, j. 24/11/2021, DJE: 01/12/2021.
vi TJSP, Recurso Inominado Cível n. 1003872-60.2020.8.26.0016, Rel. Claudia Caputo Bevilacqua Vieira, 9ª Turma Cível, Foro Central Juizados Especiais Cíveis: 1ª Vara do Juizado Especial Cível, Vergueiro, j. 30/09/2020, DJE: 30/09/2020.
vii TJSP, Apelação Cível n. 1057830-78.2019.8.26.0053, Rel. Djalma Lofrano Filho, 13ª Câmara de Direito Público, Foro Central Fazenda Pública/Acidentes: 7ª Vara de Fazenda Pública, j. 26/05/2021, DJE: 26/05/2021.
viii TJSP, Apelação Cível n. 1010072-35.2019.8.26.0011, Rel. Antonio Rigolin, 31ª Câmara de Direito Privado, Foro Regional XI, Pinheiros: 3ª Vara Cível, j. 21/09/2021, DJE: 21/09/2021