Há décadas, a globalização vem expandindo as relações econômicas internacionais e os processos de produção, de logística e de comercialização transnacionais. Nessa gigantesca cadeia mundial de suprimentos, o Brasil importa inúmeros insumos e matérias primas, como fertilizantes e herbicidas, produtos químicos e farmacêuticos, maquinários, motores, componentes eletrônicos, partes e peças de veículos, ferramentaria, equipamentos eletromecânicos, materiais para infraestrutura e muitos outros itens.
Segundo dados do Ministério da Economia, no período de janeiro a agosto de 2020, as importações brasileiras somaram cerca de 102 bilhões de dólares e as exportações atingiram cerca de 138
bilhões de dólares. Neste ano, o dólar foi cotado a R$ 4,02 no dia 1° de janeiro, mas aumentou para R$ 5,64 no dia 1° de outubro, ou seja, a variação cambial neste período superou quarenta por
cento, conforme dados do Banco Central. No mundo, somente duas moedas desvalorizaram mais do que o real, o dólar do Suriname e a Kwacha de Zâmbia, no mesmo período. Nem mesmo os mais notórios economistas previram uma desvalorização tão excessiva do real.
Ainda que, no momento da assinatura de propostas e contratos, a variação cambial fosse previsível, as suas consequências eram incalculáveis em face da maxidesvalorização superveniente. Desse
modo, a depreciação do real encarece as importações e desarranja as cadeias produtivas no Brasil. Em consequência, produtos fabricados ou comercializados no país com insumos importados, sofreram aumentos de custos na mesma proporção. Isso tornou inexequível a maioria dos contratos administrativos que dependem de insumos importados, salvo se houver o correspondente reequilíbrio econômico – financeiro. O desalinhamento entre custos e preços é ainda maior no caso de Atas de Registro de Preços (ARP) e contratos com entregas parceladas.
De modo geral, é inviável que a empresa contratada adquira estoques antecipadamente para se proteger de variações excessivas no câmbio, inclusive por que uma ARP, ainda que vigente, não
obriga o contratante a adquirir as quantidades registradas. Além disso, geralmente é inviável que a contratada efetue uma operação de hedge cambial para se proteger da variação cambial, devido à imprevisibilidade de maxidesvalorização, além do contratante não ser obrigado a adquirir a quantidade registrada na ARP.
O Conselho Monetário Nacional (CMN) determina a política cambial executada pelo Banco Central. Dessa forma, a excessiva alta do dólar constitui álea econômica extraordinária, derivada de atuação regulatória estatal. Isso configura também “fato do princípe”, espécie de ato decretado por autoridade pública que se reflete nos contratos de modo geral, a ser contraposto pelo cabível reequilíbrio, como previsto na legislação, doutrina e jurisprudência.
O Decreto Federal N° 7.892/2013 e os regulamentos de licitações contratos de empresas estatais, como o da Petrobrás e da Caixa Econômica Federal, preveem o reequilíbrio do contrato diante de álea extraordinária ou a liberação do fornecedor, sem aplicação de penalidade, quando confirmada a veracidade dos respectivos motivos e comprovantes.Além disso, sobrevieram os ruinosos efeitos da Covid 19, como a decretação de quarentena, o afastamento de empregados em idade de risco ou com sintomas suspeitos, o fechamento temporário ou permanente de inúmeras empresas, a internação de inúmeras pessoas e o lamentável óbito de tantas outras.
Portanto, com amparo superior na Constituição Federal, estas circunstâncias justificam o reequilíbrio econômico – financeiro de contratos administrativos ou a liberação dos respectivos
fornecedores, sem aplicação de sanções por inadimplência.
ROBERTO BAUNGARTNER
advogado, doutor em direito (PUC/SP), vice – presidente
do IBDC – Instituto Brasileiro de Direito Constitucional,
rgartner@uol.com.b